"O sonho pelo qual brigo exige que eu invente em mim a coragem de lutar ao lado da coragem de amar". Paulo Freire

IAZUL



Esquece, meu bom e dedicado amigo, esquece, por um momento, as tristezas e aflitivas preocupações; livra-te dessa angústia torturante instilada em tua alma pelas incertezas da vida; senta-te, aqui a meu lado, e escuta, com religiosa atenção, a famosa lenda que os poetas árabes intitularam: Iazul! Sim, é isso mesmo: Iazul! Vou narrá-la.

Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso! Viveu, outrora, na Pérsia, meio século depois de Timur Lenk, um Príncipe, generoso e bravo, que se chamava Shack Bock. Afirmavam historiadores altamente abalizados que esse glorioso Emir tinha, em sua imponente corte, um sábio, mestre e conselheiro, cuja nobre função era orientar o monarca em suas decisões, esclarecê-lo em suas dúvidas e corrigi-lo em seus erros e injustiças. Esse ulemá, judicioso e previdente, chamava-se Ismail Hassam, e era, pelos nobres muçulmanos, apelidado o Saryh (aquele que é sincero). Um dia muito cedo, logo depois da prece da madrugada, prece do ritual que os árabes denominam sobh, o Príncipe mandou que viesse à sua presença o douto conselheiro da corte. Fazia todo empenho em ser urgentemente elucidado sobre um caso que se apresentava enrodilhado pelo mistério. Sem perda de tempo, o ilustre Ismail, o Saryh, deixou os seus aposentos, e foi ter ao luxuoso divan (sala de audiência) do soberano persa. O que teria acontecido? Que caso, assim, tão grave intrigava o Rei? O monarca parecia pálido. Em sua fisionomia morena, surgiam, tracejando linhas incertas, as rugas da intranqüilidade. Depois das saudações habituais, sem mais preâmbulo, disse o Emir ao judicioso Ismail:
- Acabo de receber, do Khorassan, este pequeno cofre, encontrado pelos meus agentes secretos, entre os despojos do infeliz e estouvado Khalil, o senhor de Candahar. Dentro desse cofre vinha, apenas, esse singularíssimo anel de ouro. Desconfio que se trata de jóia raríssima, que pertenceu ao grande Timur Lenk. Como poderei descobrir o enigma que envolve este anel? E o Príncipe, estendendo a mão, entregou ao douto Ismail o misterioso anel de Candahar. Ismail, o sábio (Allah, porém é mais sábio!) examinou detidamente a jóia, virando-a e revirando-a na palma de sua mão. E depois de refletir, em silêncio, durante algum tempo, assim falou ao Príncipe, seu amo e senhor:

- Julgo-me capaz de esclarecer este mistério. Afirmo que uma das peças mais valiosas do tesouro persa acaba de chegar às vossas mãos. Este anel é o precioso e tão ambicionado anel mágico, que pertenceu ao invencível Timur Lenk, o Perseverante (que Allah o tenha entre os eleitos!). Como podeis ver, este anel, no rico escudo em forma de tâmara, ostenta, em letras bem trabalhadas, a palavra tão bela e sonora: - Iazul.
- Sim, sim - confirmou o Príncipe, muito sério - já o havia notado. No escudo, entre dois brilhantes pequeninos, lê-se a palavra: Iazul. O mistério, a meu ver, permanece. O que significa, afinal, Iazul? O sábio Saryh ergueu o rosto e, discorrendo em tom pausado e claro, explicou:
- Cumpre-me dizer-vos ó Rei do Tempo, que Iazul é uma palavra mágica, de alto e misterioso poder. Asseguro que é a palavra mais expressiva e eloqüente entre todas as que figuram no riquíssimo vocabulário persa. É mágica, repito. Reparai bem: tem o Dom de nos tornar alegres, quando estamos tristes, e de moderar as nossas alegrias, nos momentos de extrema felicidade e ventura

- Singular, muito singular - refletiu o rei. É, realmente, de alta magia, essa palavra que transforma as alegrias em preocupações, e que consegue aniquilar, ou pelo menos conter, as mágoas e tristezas que pesam em nosso coração! E fitando gravemente o sábio, acrescentou:
- Mas insisto em perguntar: o que significa essa palavra Iazul? Como podemos traduzi-la? Respondeu o eloqüente e esclarecido ulemá:

- Iazul, ó Rei, dentro da sua espantosa simplicidade, significa apenas Isso passa! Ou ainda: Tudo passa! Quando o homem atravessa períodos de felicidade, de alegria cor-de-rosa, de sorte e tranqüilidade, deve pensar no futuro e ser comedido em suas expansões, sóbrio em suas atividades. Convém que o afortunado não esqueça: Iazul! (isso passa), a roda do Destino é incerta; a vida é cheia de mudanças. Há ocasiões, porém, em que nos sentimos anavalhados pelos sofrimentos, pelas enfermidades, feridos pelas desgraças, caminhando sob a nuvem da má sorte, da ruína e atingidos pelos golpes imprevistos do infortúnio. Para que o ânimo volte ao nosso espírito, proferimos, cheios de fé, fortalecidos de esperança: Iazul! Sim, tudo passa! Virão dias melhores, dias calmos e felizes; a prosperidade e a boa sorte voltarão a iluminar a nossa jornada; a saúde será reconquistada; a serenidade procurará pouso em nosso atribulado coração! E depois de ligeira pausa, o sábio concluiu: - E, assim, ó Rei!, posso afirmar que Iazul, a palavra contida no pequeno escudo do anel, é mágica! Alivia e branda as tristezas dos infelizes; controla e arrefece as alegrias alucinadas dos exaltados!

Ao ouvir as eloqüentes e judiciosas explicações do velho ulemá, o Rei tomou do anel, colocou-o no dedo indicador da mão esquerda e disse, serenamente:

- Que notável, interessante e proveitosa lição recebi hoje! Conservarei comigo este precioso anel. Jamais esquecerei em todos os momentos culminantes da minha vida, no meio de estonteantes triunfos, ou sob o guante da desgraça, de recorrer ao eterno ensinamento contido nesta palavra mágica: Iazul!
Quero, ó irmão dos árabes, terminar esta lenda, exatamente como a iniciei:
Esquece, pois, meu amigo, esquece, por um momento, as tuas tristezas e aflitivas preocupações; livra-te desta angústia instilada em tua alma pelas incertezas da vida, senta-te, aqui a meu lado, e escuta, com religiosa atenção, a palavra mágica Iazul!

E vale a pena repetir: Iazul! Iazul! Isso passa! Isso passa!
(do livro Malba Tahan - Contos e lendas Orientais - Ediouro)